Bem urbanos e típicos da sociedade industrial são os pneus. Nasceram para rodar, para encurtar distâncias, para acelerar o tempo. Pneus são resistentes, mas se desgastam no atrito da estrada. Pneus são importantes, mas fáceis de trocar. Pneus giram à volta de um eixo que os faz girar, como peças de uma engrenagem maior. Pneus não apenas se desgastam, mas podem furar. É fácil consertar um pneu, mas às vezes, não há jeito de o recuperar.
Pneus têm valor enquanto servem para rodar. Pneus são cheios de ar. Pneus vazios não servem para circular. Imaginar um carro sem pneus é imaginar um carro que não serve para nada. Os pneus não são a coisa mais valiosa do carro, mas mesmo assim, são necessários e imprescindíveis.
É difícil imaginar nossa sociedade sem pneus. A sociedade funciona sobre pneus. Transportes grandes de carga são feitos sobre pneus. Visitamos pessoas, chegamos ao emprego e ao parque, sobre pneus.
Pneus são típicos da sociedade industrial e como são! Feitos em série, para abastecer o mercado, para serem utilizados e jogados fora, para o consumo. Pneus são objetos. Seu valor não está tanto em si mesmos, mas na função utilitária que favorecem.
1.Como Pneus
Às vezes a vida é como encher um pneu furado: a gente luta, luta, luta... trabalha, trabalha, trabalha... e está sempre na mesma. É preciso consertar a vida para que possa ser vida. Estamos na sociedade que estressa, esvazia e joga fora. Se não crescermos na consciência de ser, nossa vida será sentida como perdida.
Quantas vezes, no jogo da vida somos como pneus. Deixamo-nos esvaziar. Rodamos à volta de um eixo que nos faz girar, o eixo de uma engrenagem; mas somos vazios e a força não está em nós. Recebemos a motivação de alguém, mas nos sentimos sem garra, alienados e sem identidade. Às vezes, até gostamos da engrenagem, mas não a podemos assumir como nossa. E ela nos desgasta e esvazia.
O pneu vazio é como a pessoa sem sopro, sem alma, sem vida. Vazia de motivação, de bondade, de alegria, de entusiasmo. Precisa descobrir e abraçar ideais que dêem sentido a sua vida e mobilizem suas forças.
O pneu desgastado é como a pessoa estressada, cansada, irritada, confusa. Desfaz-se em pó e não consegue nada. Precisa parar, pensar, silenciar e re-integrar suas energias dispersas e corrigir o jeito de viver.
O pneu furado é como a pessoa traumatizada. Precisa sarar as feridas para caminhar bem.
O pneu novo é como a pessoa cheia de força. Precisa escolher os caminhos que quer trilhar, descobrir objetivos, assumir ideais, ter rumo. O pneu novo também pode ser vazio, pode furar e orientar-se para o desgaste. Assim também a pessoa nova.
O pneu usado é como a pessoa experiente. Percorreu muitos caminhos, desgastou-se, caiu em muitos buracos, carrega muitas memórias, provou o amargo e o doce da vida. Sua sabedoria está em selecionar o que é bom e verdadeiro.
3.Aposentados no vazio?
Os pneus foram projetados para rodar; desgastam-se e são aposentados no vazio. A condição humana também sofre estresse, se desgasta e se angustia, mas, ao contrário dos pneus, sua interioridade pode aumentar e se consolidar se o tempo a faz mergulhar numa experiência de amor. Não nascemos para morrer vazios, mas para crescermos para a plenitude do amor. O estresse faz parte da nossa vida, sobretudo a vida urbana é desgastante. Compete a nós escolher uma vida de acordo com a nossa condição. Ninguém, certamente, vai escolher ser como um pneu. Deus nos constituiu de liberdade, de interioridade, de subjetividade e de inter subjetividade, de capacidade para fazer a História, de maneira livre e inteligente; somos chamados à experiência do amor e não ao vazio, chamados à comunhão, à fraternidade, à intimidade com Deus e com a humanidade, à solidariedade com toda a Criação. Doamos a vida, escolhendo o sentido de nossa doação, não como peças de uma engrenagem, mas como vida e projeto que assumimos na liberdade e no amor.
4.Marta e Maria
Conhecemos a história de Marta e de Maria.
“Enquanto caminhavam, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e ficou escutando a sua palavra. Marta estava ocupada com muitos afazeres. Aproximou-se e falou: «Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda que ela venha ajudar-me!» O Senhor, porém, respondeu: «Marta, Marta! Você se preocupa e anda agitada com muitas coisas; porém, uma só coisa é necessária, Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.» (Lc.10,38-42)
Marta é ativa e Maria é contemplativa. Estas duas mulheres existem dentro de nós. Precisamos desenvolver e integrar as duas. Contribuímos, trabalhamos, nos doamos e contemplamos, saboreamos, amamos, nos encontramos com o Senhor e caminhamos no mistério de ser, guiados por Ele, com Ele e n’Ele.
Integrar estas duas dimensões é um desafio. Quase sempre nos queixamos que nos perdemos no trabalho e no fazer que se torna vazio e desgastante. E, então, nos alertamos para a necessidade do encontro e da comunhão no amor. Marta e Maria rebolam dentro de nós. E desejamos fazer e transformar; e também contemplar e amar. O tempo dá-nos condição de integrar o trabalhar e o amar, para que o trabalho seja ação de amor e o contemplar seja salvação e libertação.
Só o crescimento para a generosidade da liberdade do amor nos fará integrar estas duas dimensões do nosso ser. E, então, podemos ser como Jesus, na intimidade e na ação, ação que gera intimidade e é fruto de intimidade e intimidade que é ação salvadora e libertadora. A comunhão com o Senhor constituirá nosso ser, assim como a missão do Reino.
5.Experiência de afeto
Nossos vazios podem brotar de frustrações, insucessos, experiências de rejeição, cansaço, falta de sentido e, sobretudo, de uma fraca experiência de afeto. Podemos dizer que na base de nossas experiências de vazio está uma fraca experiência de afeto. A experiência de ser amado, acolhido, compreendido, é a raiz de nossa felicidade. Aquele que trabalha, que doa sua vida pela experiência de ser amado, terá mais condição de permanecer na sua entrega e doação. Terá mais condição de ser misericórdia e bondade para os outros. Aquele que se dispõe a servir, mas sem sentir-se amado, terá tendência para cair no vazio e desanimar.
“Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl.2,6-8)
Para assumir nossa vida, Jesus esvaziou-se. Foi um vazio assumido, voluntário, livre, para entrar na nossa história, e nas conseqüências que isso traz. Podemos dizer: Ele esvaziou-se da condição que tinha no coração da Trindade, amor pleno, para assumir as conseqüências do desamor, limites e frustrações de nossa vida. O esvaziamento de Jesus realiza a entrega total de Deus, como amor à humanidade e à Criação.
Para compensar seus vazios, muitas vezes as pessoas se afastam, se isolam, se retiram da vida, ou se envolvem em diversões, em comida e bebida, em atividades sexuais, em troca de parceiros, em drogas, em fofocas, em atividades sociais, em lutas pelo poder, em modos exibicionistas, em várias formas de apego a pessoas, a idéias, a coisas, a cargos, a hábitos. Uma forma de compensar nossos vazios é trabalhar demais. Marta é símbolo da pessoa ativa e cheia de preocupações; Maria é símbolo da pessoa que se esvazia de preocupações para aprender de Deus.
Normalmente dizemos que para fazer experiência de Deus precisamos silenciar e criar vazio dentro de nós, para que o Senhor possa ocupar o espaço que está livre em nós. Na realidade, todo o ser humano tem um vazio dentro de si que só o amor de Deus pode preencher. Esse vazio chama por Deus, anseia por Deus, e Deus é o único capaz de nos saciar com o seu amor. “Ó Deus, tu és o meu Deus, por ti madrugo. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada e sem água.” (Sl.62,2) Maria assume essa busca de vazio. Fica quieta diante de Jesus, escuta suas palavras e vê seus gestos de amor. E assim, o ser de Jesus vai ocupando os espaços interiores de Maria.
8.Maria de Nazaré
Em Maria de Nazaré, deu-se o perfeito encontro com Deus. O Senhor olhou para a humildade de sua serva e encheu-a de graça. Os soberbos, os orgulhosos e os poderosos ficam de mãos vazias. (Lc.1,26-38.46-54)
A todos, para que façamos experiência de Deus, é exigido que nos esvaziemos de nossas coisas: de preocupações, de vaidades, de preconceitos, de nossas idéias sobre Deus, de nossas experiências de Deus. O amor novo de Deus não cabe em experiências antigas. Temos que passar por um processo de desestruturação de nossas formas apreendidas, nossas idéias, nossos afetos e nossos hábitos e comportamentos. Seremos conduzidos ao nada, ao vazio, para que Deus possa nascer em nós. E todos somos convidados a fazer uma re-estruturação de nossa vida, pela presença nova do amor que nos fala em nossos vazios. Só atravessando o vazio, em que perdemos todas as seguranças, nos podemos deixar fazer de novo, pela presença do amor de Deus.
9.Ficar no vazio? Viva a comunhão!
Não fomos criados para o vazio, mas para a comunhão, experiência de intimidade em que acolhemos alguém na intimidade do nosso ser, abraçamos um projeto de vida no amor, amamos e trabalhamos, marcamos a História com nossa presença, doamos nossa vida como missão. Não somos pneus. Somos pessoas amadas, queridas, escolhidas, chamadas. Podemos re-estruturar nossa vida deixando-nos construir pelo amor. Amor de amor, misericordioso e livre do nosso Deus, Trindade Santa. Podemos encher nosso coração de coisas boas, frutos da liberdade do amor de Deus em nós: solidariedade, partilha, diálogo, reconciliação, amizade, perdão, fé, desprendimento, confiança, esperança, ação em favor da vida. Nossa vocação é o amor, viver no amor, com amor, pelo amor, ser habitados pelo amor.
“Caiu em si, levantou-se e disse: vou ao encontro do amor.”
Pe. José Luís, CSh