segunda-feira, 20 de junho de 2011

Pneus

ScreenHunter_001 Bem urbanos e típicos da sociedade industrial são os pneus. Nasceram para rodar, para encurtar distâncias, para acelerar o tempo. Pneus são resistentes, mas se desgastam no atrito da estrada. Pneus são importantes, mas fáceis de trocar. Pneus giram à volta de um eixo que os faz girar, como peças de uma engrenagem maior. Pneus não apenas se desgastam, mas podem furar. É fácil consertar um pneu, mas às vezes, não há jeito de o recuperar.

Pneus têm valor enquanto servem para rodar. Pneus são cheios de ar. Pneus vazios não servem para circular. Imaginar um carro sem pneus é imaginar um carro que não serve para nada. Os pneus não são a coisa mais valiosa do carro, mas mesmo assim, são necessários e imprescindíveis.

É difícil imaginar nossa sociedade sem pneus. A sociedade funciona sobre pneus. Transportes grandes de carga são feitos sobre pneus. Visitamos pessoas, chegamos ao emprego e ao parque, sobre pneus.

Pneus são típicos da sociedade industrial e como são! Feitos em série, para abastecer o mercado, para serem utilizados e jogados fora, para o consumo. Pneus são objetos. Seu valor não está tanto em si mesmos, mas na função utilitária que favorecem.

1.Como Pneus

Às vezes a vida é como encher um pneu furado: a gente luta, luta, luta... trabalha, trabalha, trabalha... e está sempre na mesma. É preciso consertar a vida para que possa ser vida. Estamos na sociedade que estressa, esvazia e joga fora. Se não crescermos na consciência de ser, nossa vida será sentida como perdida.

Quantas vezes, no jogo da vida somos como pneus. Deixamo-nos esvaziar. Rodamos à volta de um eixo que nos faz girar, o eixo de uma engrenagem; mas somos vazios e a força não está em nós. Recebemos a motivação de alguém, mas nos sentimos sem garra, alienados e sem identidade. Às vezes, até gostamos da engrenagem, mas não a podemos assumir como nossa. E ela nos desgasta e esvazia.

O pneu vazio é como a pessoa sem sopro, sem alma, sem vida. Vazia de motivação, de bondade, de alegria, de entusiasmo. Precisa descobrir e abraçar ideais que dêem sentido a sua vida e mobilizem suas forças.

O pneu desgastado é como a pessoa estressada, cansada, irritada, confusa. Desfaz-se em ScreenHunter_002pó e não consegue nada. Precisa parar, pensar, silenciar e re-integrar suas energias dispersas e corrigir o jeito de viver.

O pneu furado é como a pessoa traumatizada. Precisa sarar as feridas para caminhar bem.

O pneu novo é como a pessoa cheia de força. Precisa escolher os caminhos que quer trilhar, descobrir objetivos, assumir ideais, ter rumo. O pneu novo também pode ser vazio, pode furar e orientar-se para o desgaste. Assim também a pessoa nova.

O pneu usado é como a pessoa experiente. Percorreu muitos caminhos, desgastou-se, caiu em muitos buracos, carrega muitas memórias, provou o amargo e o doce da vida. Sua sabedoria está em selecionar o que é bom e verdadeiro.

3.Aposentados no vazio?

Os pneus foram projetados para rodar; desgastam-se e são aposentados no vazio. A condição humana também sofre estresse, se desgasta e se angustia, mas, ao contrário dos pneus, sua interioridade pode aumentar e se consolidar se o tempo a faz mergulhar numa experiência de amor. Não nascemos para morrer vazios, mas para crescermos para a plenitude do amor. O estresse faz parte da nossa vida, sobretudo a vida urbana é desgastante. Compete a nós escolher uma vida de acordo com a nossa condição. Ninguém, certamente,  vai escolher ser como um pneu. Deus nos constituiu de liberdade, de interioridade, de subjetividade e de inter subjetividade, de capacidade para fazer a História, de maneira livre e inteligente; somos chamados à experiência do amor e não ao vazio, chamados à comunhão, à fraternidade, à intimidade com Deus e com a humanidade, à solidariedade com toda a Criação. Doamos a vida, escolhendo o sentido de nossa doação, não como peças de uma engrenagem, mas como vida e projeto que assumimos na liberdade e no amor.

4.Marta e Maria

Conhecemos a história de Marta e de Maria.

Enquanto caminhavam, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e ficou escutando a sua palavra. Marta estava ocupada com muitos afazeres. Aproximou-se e falou: «Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda que ela venha ajudar-me!» O Senhor, porém, respondeu: «Marta, Marta! Você se preocupa e anda agitada com muitas coisas; porém, uma só coisa é necessária, Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.» (Lc.10,38-42)

Marta é ativa e Maria é contemplativa. Estas duas mulheres existem dentro de nós. Precisamos desenvolver e integrar as duas. Contribuímos, trabalhamos, nos doamos e contemplamos, saboreamos, amamos, nos encontramos com o Senhor e caminhamos no mistério de ser, guiados por Ele, com Ele e n’Ele.

Integrar estas duas dimensões é um desafio. Quase sempre nos queixamos que nos perdemos no trabalho e no fazer que se torna vazio e desgastante. E, então, nos alertamos para a necessidade do encontro e da comunhão no amor. Marta e Maria rebolam dentro de nós. E desejamos fazer e transformar; e também contemplar e amar. O tempo dá-nos condição de integrar o trabalhar e o amar, para que o trabalho seja ação de amor e o contemplar seja salvação e libertação.

Só o crescimento para a generosidade da liberdade do amor nos fará integrar estas duas dimensões do nosso ser. E, então, podemos ser como Jesus, na intimidade e na ação, ação que gera intimidade e é fruto de intimidade e intimidade que é ação salvadora e libertadora. A comunhão com o Senhor constituirá nosso ser, assim como a missão do Reino.

5.Experiência de afeto

Nossos vazios podem brotar de frustrações, insucessos, experiências de rejeição, cansaço, falta de sentido e, sobretudo, de uma fraca ScreenHunter_003experiência de afeto. Podemos dizer que na base de nossas experiências de vazio está uma fraca experiência de afeto. A experiência de ser amado, acolhido, compreendido, é a raiz de nossa felicidade. Aquele que trabalha, que doa sua vida pela experiência de ser amado, terá mais condição de permanecer na sua entrega e doação. Terá mais condição de ser misericórdia e bondade para os outros. Aquele que se dispõe a servir, mas sem sentir-se amado, terá tendência para cair no vazio e desanimar.

6.“Esvaziou-se a si mesmo”

“Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl.2,6-8)

Para assumir nossa vida, Jesus esvaziou-se. Foi um vazio assumido, voluntário, livre, para entrar na nossa história, e nas conseqüências que isso traz. Podemos dizer: Ele esvaziou-se da condição que tinha no coração da Trindade, amor pleno, para assumir as conseqüências do desamor, limites e frustrações de nossa vida. O esvaziamento de Jesus realiza a entrega total de Deus, como amor à humanidade e à Criação.

7.Vazio existencial

Para compensar seus vazios, muitas vezes as pessoas se afastam, se isolam, se retiram da vida, ou se envolvem em diversões, em comida e bebida, em atividades sexuais, em troca de parceiros, em drogas, em fofocas, em atividades sociais, em lutas pelo poder, em modos exibicionistas, em várias formas de apego a pessoas, a idéias, a coisas, a cargos, a hábitos. Uma forma de compensar nossos vazios é trabalhar demais. Marta é símbolo da pessoa ativa e cheia de preocupações; Maria é símbolo da pessoa que se esvazia de preocupações para aprender de Deus.

Normalmente dizemos que para fazer experiência de Deus precisamos silenciar e criar vazio dentro de nós, para que o Senhor possa ocupar o espaço que está livre em nós. Na realidade, todo o ser humano tem um vazio dentro de si que só o amor de Deus pode preencher. Esse vazio chama por Deus, anseia por Deus, e Deus é o único capaz de nos saciScreenHunter_004ar com o seu amor. Ó Deus, tu és o meu Deus, por ti madrugo. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada e sem água.” (Sl.62,2) Maria assume essa busca de vazio. Fica quieta diante de Jesus, escuta suas palavras e vê seus gestos de amor. E assim, o ser de Jesus vai ocupando os espaços interiores de Maria.

8.Maria de Nazaré

Em Maria de Nazaré, deu-se o perfeito encontro com Deus. O Senhor olhou para a humildade de sua serva e encheu-a de graça. Os soberbos, os orgulhosos e os poderosos ficam de mãos vazias. (Lc.1,26-38.46-54)

A todos, para que façamos experiência de Deus, é exigido que nos esvaziemos de nossas coisas: de preocupações, de vaidades, de preconceitos, de nossas idéias sobre Deus, de nossas experiências de Deus. O amor novo de Deus não cabe em experiências antigas. Temos que passar por um processo de desestruturação de nossas formas apreendidas, nossas idéias, nossos afetos e nossos hábitos e comportamentos. Seremos conduzidos ao nada, ao vazio, para que Deus possa nascer em nós. E todos somos convidados a fazer uma re-estruturação de nossa vida, pela presença nova do amor que nos fala em nossos vazios. Só atravessando o vazio, em que perdemos todas as seguranças, nos podemos deixar fazer de novo, pela presença do amor de ScreenHunter_005Deus.

9.Ficar no vazio? Viva a comunhão!

Não fomos criados para o vazio, mas para a comunhão, experiência de intimidade em que acolhemos alguém na intimidade do nosso ser, abraçamos um projeto de vida no amor, amamos e trabalhamos, marcamos a História com nossa presença, doamos nossa vida como missão. Não somos pneus. Somos pessoas amadas, queridas, escolhidas, chamadas. Podemos re-estruturar nossa vida deixando-nos construir pelo amor. Amor de amor, misericordioso e livre do nosso Deus, Trindade Santa. Podemos encher nosso coração de coisas boas, frutos da liberdade do amor de Deus em nós: solidariedade, partilha, diálogo, reconciliação, amizade, perdão, fé, desprendimento, confiança, esperança, ação em favor da vida. Nossa vocação é o amor, viver no amor, com amor, pelo amor, ser habitados pelo amor.

“Caiu em si, levantou-se e disse: vou ao encontro do amor.”

Pe. José Luís, CSh